Quando chega a hora, chega a hora

Barreto tinha acabado de se deitar para dormir quando a campainha tocou. Irritado, ele calçou as pantufas e se levantou, não antes de reparar que, magicamente, a sua dor nos joelhos tinha parado. “Tomara que não volte amanhã, eu preciso ir pra academia pra não perder o meu bônus de desconto por estar indo malhar há 384 dias sem faltar nenhum”, pensou Barreto, enquanto caminhava até a porta. Barreto dormia cedo, mas mesmo assim, dez e meia da noite é um horário esquisito para se bater à porta de alguém. Antes de abrir a porta, ele dobrou e esticou os joelhos, parado no mesmo lugar, para testar. Não era impressão, a dor tinha passado. Ingênuo e sempre esperançoso na raça humana, Barreto não tinha olho mágico. Abriu a porta mesmo sem saber quem era. Do lado de fora, um homem negro, em um manto também negro. Barreto o olha de cima à baixo e, finalmente, fala, já quase fechando a porta.

– Olha, meu senhor, eu não tenho esmola nem pão velho pra dar pro senhor não. – E, sem esperar a reação do homem, fecha a porta.

Barreto tranca a porta, se vira para voltar para a cama e dá um grito ao perceber o tal homem sentado em uma cadeira ao lado da cama. Correndo, ele abre a porta para conferir e o homem, obviamente, não está lá. Ele procura algo que possa funcionar como arma ao redor e, na falta de melhor opção, acaba pegando um exemplar de capa dura de Marimbondos de Fogo de José Sarney, na estante, e o brande ameaçadoramente para o homem calmamente sentado na cadeira.

– Se se mexer eu te mato! – Grita, como se brandisse a própria Excalibur.

– Me matar de chatice lendo o livro pra mim? E nem me fala desse cara que eu quase fui demitido três vezes porque não consegui levar ele.

Barreto não entende nada e ameaça novamente:

– Olha, sério, vai embora e eu não chamo a polícia, ok?!

O homem no manto negro se levanta.

– Eu falei pro pessoal: galera, vamos manter a pele de mármore, ou a clássica pele apodrecida pegando fogo! Mas não, quiseram que eu tivesse a cara do povo que eu visito. Aí me fizeram preto, pronto: você já é o terceiro que acha que eu sou mendigo. Antes todo mundo sabia quem eu era, agora acham que eu vou pedir dinheiro. Povinho racista do cacete, hein!

– Ué, você não é mendigo?? – Questiona Barreto.

– Olha, ô Barreto, não me irrita, tá bom? Só pelo seu racismo já era pra eu te levar sem papo arrastado pelas orelhas, não força.

– Mas se você não é mendigo, quem é você?

Bom, vamos lá: manto negro, voz sombria, subi sem ninguém me ver, eu já sabia o seu nome antes de você falar, me materializei dentro do seu apartamento e uso um manto ridículo de linho com esse capuz que me deixa parecendo um monge franciscano. Quem eu sou?

– O porteiro novo?

– Puta que pariu, tá cada vez mais difícil, viu? você não vê TV não? Filme? Eu sou a morte, idiota!

Barreto irrompe em uma risada escandalosa, deixando cair até o livro do Sarney.

– Eu vou lembrar dessa gargalhada quando você cair na real…

– Pára, pára, sério! Sério, quem é você?

– Olha só, não que fosse adiantar alguma coisa, mas você podia gastar esse tempo me implorando pra ficar, chorando, se arrependendo. Mas não, fica aí que nem um imbecil falando besteira.

– Pensando bem, você entrou aqui com a porta trancada, esse manto… Meu Deus do céu, você não ficou com medo do livro do Sarney!!!!

– Até que enfim, hein! Agora vamos que eu ainda tenho que buscar um cara no Leblon e já tô até imaginando a confusão que vai dar um preto de manto entrando em um prédio do Leblon pra falar com o dono de um banco. Acho que vou fazer um sotaque baiano pra ficar mais simpático, saca?

– Mas eu não posso morrer!

– Olha, desculpa te decepcionar, mas você já morreu…

– Já morri como???

– Porra, vai querer agora uma explicação fisiológica do que acontece quando a gente morre?

– Não, não, digo, como que eu morri se eu tô aqui?

– Tem certeza? – Diz a Morte, apontando para a cama, onde vemos o corpo de Barreto, deitado.

Barreto dá um grito de horror ao ver seu próprio corpo.

– Mas eu morri de que? Peguei o resultado do check-up ontem, eu tô ótimo!

– Tava ótimo, você quer dizer. Deixa eu ver aqui…

A Morte pega um tablet e começa a digitar.

– Olha, aqui diz que você morreu de AVC. Fulminante, dormindo, não dá tempo nem de abrir os olhos. O bom é que não dói, né!?

– Mas AVC? Eu não tinha nada, eu me cuidava tanto!

– Pois é, acontece. Vamos que eu tenho hora.

– Mas, mas… eu me cuidava tanto! Fazia exercício, não comia sal, açúcar, não tomava refrigerante, não fumava, não pegava sol depois do meio dia, não pegava friagem depois do banho, comia verduras, legumes, tomava vitaminas, não ficava muito perto da TV… Que merda…

– Pois é, uma pena. Você tava quase ganhando o título de ser humano com a vida mais chata da história da humanidade.

– Nem carne vermelha eu comia!

– E você queria viver tanto pra que, nessa chatice toda!?

– Não é chatice, eu me cuidava!

– Se cuidava pra viver a vida mais chata que conseguisse, isso sim. Amigão, entende uma coisa: quando chega a hora, chega a hora. Não adianta. Claro que não é pra sair por aí fazendo um monte de merda, mas também não precisa exagerar.

– E agora? Eu vou pro céu ou pro inferno?

– Isso não é comigo não, eu só te levo até o outro lado, aí lá é com o pessoal do RH decidir pra onde você vai.

– Já sei! Eu posso te desafiar em um jogo e se você perder você não me leva!

– Vocês humanos vêem muita televisão. Pra que eu ia jogar alguma coisa com você? É que nem vilão que faz discurso ao invés de matar logo o herói. Para de choramingação e vambora.

– Peraí, rapidinho.

Barreto pega o livro do Sarney, lê algo na dedicatória e começa a discar um número no seu celular. A pessoa do outro lado atende e ele começa a falar:

– Padim Zé? Benção, meu padim. Isso, é o Barreto, irmão da Cláudia, advogada que ajudou a Roseaninha com aquele probleminha lá, lembra? Isso, isso, um meio careca, eu mesmo! Então, padrinho, é o seguinte…

Nesse momento ele percebe que a Morte está escutando a conversa e começa a falar baixo. Depois de alguns segundos falando em segredo, ele fala alto:

– Quer falar com ele, Padim? Não? Tá bom então, fico no aguardo. Brigado, Padim, um beijo!

Barreto desliga o telefone.

– Que palhaçada é essa? Vai pedir pizza uma hora dessas? Pára de tentar enrolar e vamos embora.

Nisso, um celular toca. Eles se entreolham e Barreto mostra que não é o dele. A Morte, espantada, pega o celular no bolso e atende.

– Alô? Chefe? Oi, chefe, algum problema? Isso, isso, aqui no Rio, Barreto, um chato, esse mesmo! Engano? Não, chefe, tô com a ficha dele aqui na mão, tem erro não! Que? De Brasília? Do Senado? Sei. Ameaçou cortar verba? Vai fazer dossiê??? Mas chefe, como a gente vai ficar sem o cartão corporativo? O Rio de Janeiro tá um absurdo de caro, só de táxi já gastei mais de cem pratas hoje! Ah, entendi. Entendi. Não é ameaça, é só um “pedido”? Entendi sim… Claro. Oi? Ganho um carro zero, um cargo comissionado de assessor de deputado e vou trabalhar por cinco anos só nas Bahamas? Mas chefe, o Senhor sabe que eu não concordo com essas coisas e… Sim. Tá, tá bem. A mãe dela tá vindo morar com a gente. Pois é, ficou desempregada, tá complicado. Não, chefe, eu não posso perder esse emprego! Tá bom, chefe, tá bom. Mas se esse cara for tirar da lista todos os amigos dele não vai sobrar ninguém! Desculpa, não tô discutindo não. Desculpa. Tá bom. Tá bom. Tchau.

Barreto olha para a Morte, vitorioso. A Morte se desculpa, pega seu tablet e se dirige até a porta. Humilde, ela vai embora. Barreto fecha a porta, vai até o armário do banheiro e joga vários remédios fora. Bota um copo de Whisky e começa a fritar ovos com bacon, vitorioso. Depois de comer, ele liga o ar condicionado no máximo, tira a camisa e se deita. Não antes sem murmurar, vencedor: “Esse Deus tá achando que é quem? José Sarney?”

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