O salto alto

O padre não a convenceu. A professora desistiu na terceira conversa. Sua mãe, autoritária e controladora, não conseguiu.

Aquela mulher, filha de pais separados, ainda era menina demais para entender aquela gente metida a sabe tudo. Aquela menina, filha de pais ausentes, já era mulher para entender que, dali pra frente, ela tomaria as decisões da própria vida.

Já na casa dos avós, ela ainda precisaria acostumar a não tomar Nescau todas as manhãs. O salário de aposentado do avô só dava para café, leite e um pão de milho raspado na manteiga.

Os dias – implacáveis – vieram um por um. Seus olhos já haviam desinchado, mas o coração ainda não. Sofria escondido. Sua avó via sorriso e um leve mau humor pela manhã, nada além. À noite, cada gota de lágrima que dançava o tango na pele lisa era seca com um edredom de corações estampados. Um contraste entre o sombrio e o delicado. Será que a vida sempre teria corações para secar as lágrimas? Ela ainda não sabia responder.

Conforme a realidade batia na porta, ela também foi se modificando como pessoa. Ouviu dizer que se reinventar era possível; passou a sonhar acordada com as possibilidades boas de um dia seguinte.

No trabalho era conhecida pela determinação. Sabia onde queria chegar e sabia quais coisas tinha que superar. Tinha um chefe desagradável que não economizava olhares para suas coxas e seu decote. Ela não ligaria de uma olhada rápida. Mesmo. Mas aquilo era uma constante. Uma triste constante. A arrogância no olhar dele a torturava. De cabeça evoluída, ela pensava: sairia com um canalha, com um pé rapado, um estressado; mas se conhecia o suficiente: jamais daria espaço para um arrogante.

E, durante o barulho ritmado de seu salto alto, a vida se desdobrava, se revelava. Empregos novos vieram, até uma nova pessoa que a tirou alguns traumas e tabus. Que a fez feliz por dois anos, mas nunca soube exatamente quem era aquela mulher. Não que ele desconfiasse de algo; ela é que guardava segredos de dor. Desses que geralmente ficam escondidos até nosso último suspiro.

Em uma das reviravoltas cotidianas, ela decidiu entender um pouco sobre aquilo que a carne e os ossos escondem. Tinha feridas que haviam ultrapassado qualquer descrição que a medicina podia dar: a dor vinha da alma. Estava decidida a enxergar o que havia por dentro de si.

Acordou, escovou dentes e cabelo, não exagerou na maquiagem e calçou um salto, mesmo que relativamente baixo, ainda era um salto. Conforme a missa acontecia, o padre a observava inquieto. Ao término, pediu que ela aguardasse enquanto os fiéis deixavam a igreja. Assim foi. Indelicado, o sacerdote primeiro perguntou se estava tudo bem. Ouviu um ‘sim, e o senhor?’. Logo em seguida, em tom deselegante, o velho indagou:

– Não trouxe a criança?

E a resposta foi dada com emoções emergindo por todos os poros:

– Trouxe. Ela tá aqui no peito e nas lembranças que não me abandonam, padre.

Deu as costas para aquele senhor e aquele templo. O barulho ritmado fez-se outra vez. E não eram coroinhas desmontando instrumentos. Era o salto alto de uma mulher dando as costas para a invasão da vida alheia. Havia pressa e choro por vir.

Quando entrou no carro, sozinha, tirou o salto, reclinou o banco e entregou-se. Soluços vieram acompanhados de raiva pela intromissão. Mesmo naquele cenário desesperador, ela continuava mulher. Dessas com M maiúsculo e, por isso, sabia que decisões são sempre a metade do caminho entre o choro e o riso, a dúvida e a certeza.

Tirando o padre que não a convenceu, a professora que desistiu na terceira conversa e a mãe, autoritária e controladora, mais ninguém sabia da decisão de Ana pelo aborto. Ela tinha apenas quinze anos de idade. Seus avós e seu segundo namorado nem sonhavam.

Ana foi estuprada pelo ex-namorado Jean. Sim, o cara era namorado. Houve um dia em que ela não estava afim nem de foder, nem de fazer amor. Ele estava e muito. Esse acontecimento teria se tornado criança com nome e sobrenome, não fosse ela desmanchar-se inteira. Brigar com o mundo para não ter aquele filho que, ao contrário da lógica, teria nascido do ódio e não do amor.

Ana virou mulher aos quinze anos. Descobriu que a vida é um salto e ele não é baixo. Que vai doer, então segura. Que vai sofrer, mas depois cura.

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