Não era amor, era barganha

Existe um tipo de escambo entre as pessoas que me preocupa um tanto. Um breve retrato desse oportunismo pode vir lá da infância, no dia do seu aniversário, por exemplo. Você se aproveita do fato de ser uma data em que as pessoas se mobilizam em direção à luz da sua “importância de um dia” e resolve pedir regalias: não lavar a louça, não arrumar a cama, não ir à escola, não tomar banho, comer Big Mac ao invés de canja. Quem nunca?

Mas na fase adulta isso acontece também, num tom menos recreativo e sem inocência.

Mariazinha te da um presente super delicado e cuidadoso. Minutos depois, papo vem, papo vai, aproveita para fazer algum tipo de brincadeira que vai te constranger. Ela não é de fazer esse tipo de brincadeira, mas bem nesse dia ela faz. Você acaba de ganhar um presente dela e fica um pouco intimidado em quebrar o clima de agradecimento. Ficam “elas por elas”, porque afinal, você acaba de ganhar um presente, e não seria muito poético um desentendimento numa ocasião assim.

Isso se estende ao André que passou a te tratar diferente, num tom de hierarquia porque te emprestou dinheiro há um mês – e você ainda está no prazo combinado pra devolver. Tem a Valquíria que hoje está proferindo ordens passivo-agressivas porque está me dando carona, e sabe que eu dependo dela pra voltar pra casa. E todo cuidado é pouco se você tiver um amigo meio famosinho, cheio de seguidores, que acha que toda e qualquer pessoa a sua volta está querendo tirar uma casquinha do seu sucesso. Daí sem querer, ele te trata como um fã, quando na verdade você às vezes até esquece que ele é do tipo que ultrapassa os 1K likes no Instagram em qualquer postagem. Era tipo só um café, mas ele não entendeu, ele achou que eu queria uma foto com ele, quase um favor de ídolo, só que não.

Pode acontecer também quando o seu colega  João te chama pra jantar na casa dele, e você senta junto de sua família na mesa. O pai do João, aquele patriarca cheio de ideias impositivas, cidadão de bem, cheio de certezas sobre o mundo, resolve falar sobre o que é bom pra você – sem mal te conhecer –, sem você ter perguntado. Pior é quando a conversa chega ao tema político, e ele resolve falar mal do partido que detesta, numa espécie de teste conspiratório, para saber se você está no time dele. Mas eu estou na casa dele, consumindo um banquete que ele patrocinou. Ele sabe que caso eu discorde, pode parecer uma grande desfeita. Numa possível discordância, não é de bom tom uma visita causar indigestão no anfitrião.

E o time dos “agiotas de ocasião” vai longe. A pessoa que você está saindo. Já perdi as contas de quantas amigas estavam saindo com um cara (ou vice-versa) que as presenteava com todos os mimos possíveis, pagava a conta em restaurantes caros, parecia o príncipe Alvarinho montado num unicórnio dourado. Mas na primeira briga, a conta vinha alta, com altas doses de machismo. Era um rolo de papel gigante, daquelas que se encostam ao chão e vão desenrolando. E daí elas entenderam que não eram agrados genuínos, mas sim promissórias de uma relação patrocinada. Era a nota fiscal para um momento oportuno de cobrança,

É preciso muito cuidado com quem arquiteta a sua gratidão, com quem faz de tudo por você para mais tarde te transformar num devedor. Esse jogo existe, e não se sustenta apenas pelo esmero material, mas por favores, ou benefícios disfarçados de gentileza. Os juros são altos, os bancos são tudo, menos bonzinhos. Esmolas afetivas são mecanismos bastante perigosos quando usados para crédito de chantagem. No meu tempo de formação como ator, existia um exercício bem bacana para lidar com esse sentimento, você ganhava um objeto simbólico de alguém e tinha que dizer: “obrigado, não te devo nada”. Acho um pouco ilusória a ideia de achar que as pessoas realmente dão sem esperar em troca, isso é quase inevitável, e a gente não necessariamente espera na mesma moeda, mas espera, e tem que tomar cuidado para não criar a velha listinha – aquela parte de jogar na cara no meio de uma briga.

O problema não é presentear, nem aceitar o presente, mas como quem presenteia lida com isso. Ninguém esta livre de cobrar ou de achar que os outros são ingratos. Ingratidão machuca, mas existe também a culpa do presenteado, aquele que aceita, mas logo em seguida se sente devedor. A expectativa de quem presenteia é sempre um risco, porque no fim das contas, a troca nunca é igual, e essa é a graça, não ser igual. Fazer algo por alguém é algo que implica nesse exame de intenção, separar o que é amor do que é barganha.

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