Já passou da hora de você tirar os óculos

Eu uso óculos. Não por charme. Não por causa da música dos Paralamas. Nem só pra ~dirigir e assistir TV~. Uso pela força da necessidade, que começou a pegar quando eu tinha uns doze anos. Por mera traquinagem, o destino, Deus ou o cosmos – como vocês preferirem chamar – resolveu me fazer mais uma dessas tantas ceguetas que existem mundo afora. Quatro e vinte e cinco de miopia em cada vista. Nada que me impossibilite de viver, de sorrir ou de comer um bom prato de arroz e feijão. Mas algo que me impossibilita de reconhecer a minha própria mãe me acenando do outro lado da rua – o que, convenhamos, não é a coisa mais agradável do mundo.

De uns tempos pra cá, adquiri uma alergia na vista esquerda – diagnóstico do doutor Google, mas não reproduzam isso em casa, crianças – que me impossibilita de usar lentes de contato. Temporariamente, espero eu. E aí, a escolha que se impõe é enxergar como um pirata ou assumir os óculos independente da ocasião. Opto pela segunda alternativa, na maioria das vezes. O que me fez desenvolver uma brincadeira curiosa: a de tirar os óculos assim, de repente, no meio da rua. Ou quando estou sentada no banco do passageiro ou de trás do carro de alguém.

E a noite da favela é uma das coisas mais linda que existem quando estou sem óculos. É de uma beleza indescritível. Talvez Punta Cana supere. Mas só talvez. Você, que é míope, faça o teste. Você, que não tem esse privilégio, imagine. Cada luzinha da periferia – assim como os faróis dos carros e as luzes da rua – vira um bicho enorme e desfocado. Mais ou menos do tamanho de uma pizza gigante. E os feixes de luz, ora brancos, ora amarelos, se organizam como aquelas imagens aumentadas de flocos de neve. E parece estar assim, a três palmos do nariz.

É realmente bonito. A brisa mais gostosa que já experimentei na vida. Tão gostosa que se tudo não fosse tão corrido – e se atrás da gente não viesse mais gente – eu não me acanharia em gastar horas admirando o horizonte mais incrível que eu já vi na vida. E é movida por isso que hoje, em vez de me apropriar daquele discursinho de “colocar os óculos”, vou recomendar que você os tire. Por um breve minuto. E passe a enxergar além do óbvio. A favela não é só tráfico e tiro. O vizinho pode ser um cara maravilhoso, mas insuportável, daqueles que só ficam de pau duro pra observar a própria ~virilidade~ no espelho. O colega de trabalho pode ser horroroso, mas uma companhia agradabilíssima para uma tarde, uma semana estressante ou uma vida. Usar salto alto pode deixar o andar mais sexy e as pernas mais torneadas, mas nunca será mais bonito do que o conforto de um par de Havaianas. A madame do shopping pode ser a pessoa mais elegante do mundo, mas gente fina é outra coisa, entende?

Por mais incrível que possa parecer aos leigos na arte da abstração, os olhos não veem tudo. Eles só veem o óbvio. Que a Gisele Bündchen é bonita, que o Luan Santana é vesgo. Que a Xuxa é loira, que a Cleo Pires é morena. Que Molejão é melhor do que Beatles. Que leite é branco, que café é preto. Que dormir, comer e transar são as melhores coisas do mundo. Que carteira vazia é sinônimo de pobreza, que carteira cheia é sinônimo de riqueza.

Peraí. Será? Eis aqui a hora de tirar os óculos.

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