A falta daquilo que faltou

Sinto um bocado de falta da sua boca e de como só ela sabia calar os meus problemas mais gritantes. Sinto um punhado de falta dos seus punhos e de ter que segurá-los para impedir que seu ciúme em forma de tapa espatifasse ardentemente em minha cara.

Sinto falta de procurar seus pés frios debaixo daqueles lençóis embolados enquanto compartilhávamos nossas insônias e controlávamos nossa respiração ansiosa, tentando, sem sucesso, fingir que dormíamos. Sinto falta dos seus livros coloridos e inutilmente ancorados em minha estante e de tudo aquilo que deixou não lido em um só instante.

Sinto falta das fotos que não tiramos em meio às muitas viagens, que nem sequer fizemos. Sinto falta dos muitos planos que hoje, sem você, nem sentido mais possuem. Sinto falta da casa em que nem chegamos a morar, da lareira que nunca tivemos a chance de acender, do cachorro sonolento que deixamos arranhando aquela vitrine abafada e das tantas coisas que queríamos para nós e não deram em absolutamente nada.

Sinto falta da geladeira vermelha que nunca foi nossa, dos ímãs bregas que nunca tiveram casa e dos potes de sorvetes que, agora, muito provavelmente já derreteram ou passaram do prazo de validade. Sinto muita falta daquilo que só foi feto, mas nunca nasceu de fato. Sinto falta do tanto que faltou em nossas festas. Dos brigadeiros que nunca enrolamos juntos e das velas que nem chegamos a acender para então, quem sabe, ter a chance imperdível de assoprar.

Sinto falta dos amigos que faltaram em nossos jantares, que foram adiados antes mesmo de o salmão descongelar e de a massa da torta resolver crescer. Sinto falta de nós. Sinto falta dos nossos insolvíveis nós. Sinto falta do seu timbre suave em minha voz e de tudo aquilo que abandonamos em nossos passos corajosos lá de atrás.

Sinto falta da jabuticabeira carregada de frutos, que não passou de semente em nossa mente, e das mentiras que ficaram enterradas entre nossos dentes manchados de uva fermentada. Sinto falta daquilo que o padre nem disse e do “sim”, que nunca pude gaguejar de cima do altar. Quer saber mesmo? Sinto falta daquilo que nem fizemos e das infinitas coisas que fizemos de conta que faríamos.

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