Estamos todos de ressaca

O enjôo da ressaca é diferente de qualquer outro. Primeiro porque raramente vem sozinho: o peso na consciência, o “por que não pensei nisso antes?” e o arrependimento são sintomas claros de que exageramos na dose. Tenho a impressão de que vivemos numa ressaca coletiva, que aflige seres humanos que têm em comum uma certeza: nada será como antes.

Ao invés de misturar vodka com tequila e cerveja, talvez tenhamos exagerado na dose de fé na humanidade, esperança no Brasil e um orgulho cego de vermos coisas boas acontecendo o tempo todo. Separados, eles deixam a gente leve. Juntos, tiram nossa perspectiva. Como um bêbado que perde a noção do espaço, nós perdemos a referência. E rimos, e celebramos, e transbordamos felicidade no olhar.

Depois que o efeito passa – a base de muita água e um combo de remedinhos ou de doses cavalares de realidade – fica a sensação de que bebemos demais. Na hora parecia só incrível que o contraste tivesse sido aumentado, que as pessoas estivessem mais humanas e que o tombo tivesse sido só um pequeno tropeço (e não deixaria cicatrizes). Quando a sanidade volta a gente tem vergonha.

O maior símbolo da ressaca não é a dor de cabeça, não é o banheiro sujo. É a vergonha. E a gente nunca sabe direito o que fazer com ela. Fica com receio de tomar uma atitude porque teme ter magoado alguém. Fica cansado para se mexer da cama porque parece que o caminhão que te atropelou te arrancou a vitalidade. Fica certo de que a discrepância entre o antes da embriaguez e o agora é ver as coisas como realmente são.

Eu estou de ressaca. Meu corpo dói, sinto um eterno cansaço que me impede de seguir como se a vida fosse como antes, porque não é. É impossível que sejamos os mesmos depois de saber de um estupro coletivo de uma menina de 16 anos. De um vídeo com esse teor ter sido postado na internet e ainda assim ser pouco para responsabilizar os agressores. Desse mesmo vídeo ter sido o mais visto e procurado no Brasil nos dias seguintes ao caso. De um réu que confessou estar lá ter saído da delegacia com as mãos que deveriam estar algemadas fazendo hang loose.

Depois da aprovação de um projeto de lei que faz com que a nossa liberdade de expressão na internet seja compatível às piores ditaduras do mundo. Depois de percebermos que a sede pelo poder parece imunizar qualquer político contra o pensamento coletivo. Depois de vermos as Olimpíadas – tão comemoradas – se transformarem em uma página esquecida no jornal que fala sobre obras atrasadas. Depois de ouvirmos discursos homofóbicos, transfóbicos, preconceituosos e machistas de onde deveriam ressoar as palavras mais bonitas de apoio e amparo.

Dizem que a melhor cura para ressaca é continuar bebendo. Mas não está fácil encontrar a crença para consumir. Parece que entramos na era da abstinência de esperança. Meus dedos não param de tremer.

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